Em entrevista exclusiva ao Diário, o ex-sócio da boate Kiss Mauro Londero Hoffmann quebrou o silêncio que foi sua marca nesses 10 anos e contou sobre sua responsabilidade no incêndio, apontou pessoas e órgãos públicos que deveriam também ser levados a julgamento, relatou o drama pessoal que vive há 10 anos e os planos para o futuro. É a sua primeira entrevista a um veículo de comunicação de Santa Maria desde o incêndio de 27 de janeiro de 2013.
O ex-sócio optou pelo silêncio esses anos todos porque sofreu muitas represálias e até ameaças de morte. Mudou-se de casa e cidade em diversas oportunidades. Atualmente, reside em Santa Catarina. Em dezembro de 2021, Mauro foi condenado a 19 anos de prisão. Em agosto de 2022, o júri foi anulado pelo Tribunal de Justiça do Estado devido a irregularidades. Ainda não há data para o novo julgamento.

Mauro era um conhecido empresário do ramo de diversão noturna em Santa Maria. Antes de entrar como sócio da Kiss, era dono de outra boate local, a Absinto Hall, que funcionava no shopping Monet. Na época, era uma das casas noturnas mais badaladas da cidade. Em busca de expandir os negócios, associou-se a Elissandro Spohr, o Kiko, no comando da boate Kiss, na Rua dos Andradas. Elissandro era um jovem que começava a fazer fama promovendo festas jovens.
No júri realizado em dezembro de 2021, Mauro foi condenado a 19 anos e seis meses por 242 homicídios e 636 tentativas de homicídio por dolo eventual. No julgamento, também foram condenados os outros três réus do processo criminal, entre eles o próprio Elissandro, sentenciado a 22 anos, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, que receberam pena de 18 anos de cadeia.
Em agosto do ano passado, o resultado do júri foi anulado pelo Tribunal de Justiça do Estado devido a irregularidades no rito do júri conduzido pelo juiz Orlando Faccini Neto. Ainda não há data marcada para o novo julgamento dos quatro réus.
Diário — Qual a sua memória daquele dia, 10 anos atrás?
Em 30 minutos de conversa com o jornalista Alexandre De Grandi, na sede do Grupo Diário, no dia 19 de janeiro, o empresário relembrou as memórias da tragédia e disse desejar ser julgado ainda em 2023. Confira a entrevista.
Mauro Hoffmann – Passo por isso quase que diariamente. A primeira lembrança é quando toca o telefone. Eu estava em casa e vem o alerta do começo do incêndio. Entro no carro e chego lá antes dos Bombeiros. Chego na hora do terror, era uma cena horrível, e ajudo da maneira que posso. Carregamos muita gente para os carros, os taxistas ajudaram muito, depois os Bombeiros chegaram e era uma situação difícil. Ninguém estava preparado para aquilo.
Diário — Você tinha um negócio consolidado, a boate Absinto, com anos de atuação na noite de Santa Maria. Arrepende-se de ter entrado na sociedade, ou alguma coisa que pudesse ter feito?
Mauro – Não me arrependo de ter entrado (no negócio) da casa noturna. Talvez uma participação mais efetiva, eu era sócio investidor. Eu e o Elissandro tínhamos um acordo, que não foi para o papel, mas os documentos do processo provam isso, ele ganhava semanalmente para ser o administrador da casa. Eventualmente, eu ia, às quintas-feiras, e uma vez por semana fazíamos uma sociedade anônima. Nós nos reuníamos uma vez por mês, como um "conselho fiscal", tomávamos as decisões e quem administrava era ele. Víamos quando tínhamos que investir, e ele que tocava no negócio. Foi uma tragédia, uma sucessão de pequenos erros de várias pessoas e órgãos, que culminaram infelizmente nisso.
Diário — Pela sua experiência, não acha que poderia ter feito mais, questionado o Elissandro?
Mauro – Talvez sim, e talvez não fosse resolver nada. Eu pago por ser experiente. Eu não contratei a banda, eu não sabia que eles faziam com fogos de artifício, eu não comprei fogos indevidos (que eram) para ambiente aberto, eu não mandei instalar a espuma nem os guarda-corpos, embora tudo isso tenha sido fiscalizado e refiscalizado. Os Bombeiros que são mais experientes não pagaram, o Ministério Público, com todo o seu arsenal e que teve diversas vezes fiscalizando, também não pagou, nem a prefeitura que autorizou o funcionamento. Os próprios engenheiros que fizeram a obra, os sócios anteriores, quem da prefeitura entregou os alvarás com todas aquelas irregularidades. Todos esses eram experientes, mas o único que paga somente pela experiência sou eu. Eu não tenho ato nenhum na tragédia. Todas as funções que eram de um administrador de casa noturna, que é o que eu fazia na minha casa noturna, eu nunca fiz nada lá.
Diário — Então você acha que faltou gente na responsabilidade de tudo isto, sentada no banco dos réus?
Mauro – Eu luto pela mesma coisa que todo mundo luta, eu quero justiça. Porque dentro da lei, eu não faço parte deste polo, como sócio investidor eu respondo pela parte civil. Infelizmente, era um acordo verbal, o Kiko confirma isso. Nós tínhamos um acordo verbal.
Diário — O que você e seu advogado acharam do resultado do júri e da anulação?
Mauro – A pessoa que está na situação que eu estou, de ser julgado por 242 crimes, observa tudo. O júri era um circo e um teatro. Eles tinham que resolver aquele problema. E foram contratados os artistas principais, tinha um roteiro a ser seguido. No segundo dia, mandei um recado para o meu advogado, dizendo: "Isso aqui tem favas contadas, porque do jeito que está sendo conduzido, vão dar mais de 15 anos para todos, e todos sairão algemados e presos daqui". E pronto, satisfez a sociedade. Só que eles passaram tantas vezes do limite da lei, que foram apontadas 19 nulidades no processo, e foram aceitas seis.
Diário — E qual a expectativa para o novo júri?
Mauro – Gostaria que fosse neste ano ainda. Queremos um júri limpo, honesto e que tenhamos chance de defesa. Porque a sensação lá não era esta. Da forma que os promotores conduziram, que o juiz tranca umas coisas e destranca outras. Foram seis nulidades. Eu sou acusado, no último instante, fizeram uma nova teoria, da "cegueira deliberada", de que pela experiência eu "fiz que não vi" e que deveria ser condenado por isso. Só que isso é fora da norma do jogo, deveria ter sido feito na acusação. Foi uma sequência de injustiças.
Diário — Qual a sensação de ficar à frente de todos pela primeira vez, no julgamento?
Mauro – Foi bem difícil e é bem difícil, porque a dor está dentro deles. A dor dos pais nunca ninguém vai saber estudar. Além da perda do filho, houve pais que perderam dois filhos. A forma da perda, aquela comoção coletiva, só eles para saber. Eu procurei ser sempre respeitoso com os pais, procurei não participar de nada, e esse tempo todo que estive recluso foi mais em respeito a eles.
Diário — E conseguiu se manifestar sobre esse sentimento?
Mauro — O júri foi muito longo, nunca estive numa situação dessas. Dez dias de júri é extremamente cansativo para quem está sendo acusado, ver aquela gritaria. Eu cheguei bem cabisbaixo no último dia, tem muita coisa que gostaria de dizer, de ter explicado melhor. Teoricamente, estarei melhor preparado para o próximo júri. Mas a minha linha de defesa é a verdade. Eu só entro na boate na hora que o MP me diz que posso trabalhar, assino o contrato e volto para a sociedade.
Diário — Como a relação com a Kiss lhe afeta hoje?
Mauro — Eu sempre fui um cara muito forte, sempre controlei essas emoções, e nessa situação tive que ser mais forte ainda em função da minha família. Além de ser preso no segundo dia (28 de janeiro de 2013), do depoimento já saí preso, foram sequências de ameaças de morte, de incendiar a minha casa. As minhas filhas saíram fugidas, uma para cada lado. Quando cheguei no presídio, fui ameaçado de morte. Eu não podia comer a comida ou passar em determinados lugares porque iriam me matar, e aquilo só foi piorando. Isto (segue) até hoje. Eu nunca consegui sair deste problema. Tenho cerca de 500 processos contra mim, criminais, trabalhistas, civis, indenizações por dano moral, então já me mudei várias vezes de cidade. A minha filha estudou em vários colégios e faculdades porque cada ano íamos a um lugar diferente, por necessidade e estratégia. Eu quero fazer esse júri, até porque minha mãe tem 92 anos, e uma hora a verdade vai ter que aparecer e vou ser absolvido. Eu respondo a uma narrativa, o sistema criou uma narrativa para o tamanho daquilo, prender a pessoa para acalmar a população. No domingo (27 de janeiro de 2013), era um crime culposo, havia um crime, e na segunda (28), quando o caso passa a ser da União, tudo o que o MP e os Bombeiros tinham dado em entrevistas de que era culposo, um acidente, vai mudando e mudando, para fazer o que eles fizeram e resolver o problema.
Diário — E para o futuro, quais são suas prioridades?
Mauro – Para o meu futuro, quero ter paz. Estou chegando aos meus 60 anos. Tive todos os meus bens bloqueados, precisei fechar todas as minhas empresas. Esse é o meu maior problema, e quero simplesmente ter a chance de me defender. Acho que essa próxima oportunidade vai ser bem melhor.
Diário — Você já comentou sobre a possibilidade de escrever um livro, mas o que você colocaria nele?
Mauro — Já estive em contato com duas ou três editoras informalmente. Eu contaria o lado do ser humano que passa por uma tragédia midiática e mundial. Vejo pelo meu lado, mas eu imagino como seja do lado de lá, que realmente perderam os filhos. Quero contar outras coisas também, dar a minha opinião. Tem muitas coisas no processo, de direcionamento, e que nunca ninguém me perguntou em todo esse tempo. Sobre o que eu sabia da prefeitura, como as coisas funcionam com os Bombeiros. Acho que nós, como sociedade, perdemos a chance de amadurecer nessa questão, sobre quem errou e por que fizeram o que fizeram. Como sociedade, não aprendemos nada. Ninguém tocou no assunto necessário, de como as coisas funcionam, de como a empresa que emitia os laudos funcionava, e nunca ninguém quis saber disso.
Diário — Deveria haver mais pessoas sentadas no banco dos réus?
Mauro – Obviamente, com certeza. Eles restringiram a fogo e espuma, tiraram toda a parte de fiscalização, a parte técnica, de laudos etc. Eu não botei fogo e não botei a espuma. Infelizmente, os pais confiaram demais nos promotores. Inclusive, uma das coisas que peço é que mostrem registros de conversas dos pais com os promotores. Existem "flashs" que foram para a televisão falando da prefeitura. E os pais sabem disso, da quantidade de gente que foi tentar atrapalhar um pouco.
Diário — Mas você entende o posicionamento dos pais e o que permeia o sentimento deles?
Mauro — Eu nem sei da onde os pais tiram forças, é difícil.
Diário — A sua tese de defesa muda agora em novo julgamento? Algum detalhe será agregado?
Mauro – Não, apenas acho que a maneira de explicar vai ser diferente. Mas a minha tese será a mesma. Eu só quero que as pessoas saibam que o que disse no depoimento do dia 28 (de janeiro de 2013) é a verdade, quem administrava era fulano, a irmã dele (Kiko) era gerente disso, o cunhado era o gerente da noite. Eu participava uma vez por mês da reunião do conselho fiscal, eu fui lá, nunca disse que não. É bom, de forma mais serena, tentar explicar algumas coisas. Aquela versão que passou esses anos todos nas redes sociais é completamente mentirosa. Enquanto as pessoas não souberem a verdade, o sentimento não vai mudar.